Por Eduardo Prado Coelho
Já falei do tema, já polemizei sobre ele, mas a verdade é que é preciso recomeçar porque não vejo sinais de que as coisas melhorem: o hábito da praxe estudantil alarga-se a todas as formas de ensino e a todos os lugares do país.
Nos meus tempos de faculdade, era uma sobrevivência apenas suportável no âmbito de Coimbra, porque aí correspondia à imagem de uma tradição. E também a capa e batina eram a marca coimbrã, capaz de suscitar as saudades daqueles que mantinham desse tempo recordações matizadas pelo tempo e a melancolia.
Se por acaso via alguma rapariga ou rapaz nas ruas de Lisboa envergando uma capa e batina, pensava sempre que se tratava de uma aventesma que se tinha desencaminhado.
Pouco a pouco, as coisas alteraram-se e estabeleceu-se não apenas um ritual de entrada como também cerimónias que mobilizavam todo um folclore que eu julgava proscrito. E chegam-me ecos de como, em todos os graus de ensino, e nas mais diversas escolas, a praxe se vai tornando num hábito enraizado e visto com benevolente tolerância.
Com duas justificações, é verdade.
A primeira é mais de ordem prática: os que foram praxados querem praxar, um pouco como compensação por aquilo de que foram objecto. A segunda tem um colorido antropológico: trata-se de um ritual de iniciação que pretende reforçar o sentimento de pertença a uma comunidade.
Pelo meu lado, vejo sempre tais práticas como sintomas mais ou menos disfarçados de um prazer no exercício da humilhação dos outros.
A praxe é uma forma bárbara ou estúpida de exercer um poder totalmente arbitrário que se manifesta através do puro sadismo e da violência sexualizada.
Tal como em certas instituições militares ou religiosas, ela tem por função quebrar a vontade individualdaquele que entra de forma a torná-lo mais dócil no interior da comunidade onde entrou.
Dirão que exagero e que estou a dramatizar algo que é apenas um jogo em que as próprias vítimas acabam por colaborar de boa vontade. É possível assumir este olhar distraído, mas talvez seja melhor, para compreendermos o mundo em que vivemos, perceber aquilo que no fundo, mesmo que muito inconscientemente, está em jogo: o poder e a agressão sem regras.
Em França, muitas destas práticas só começaram verdadeiramente a assustar quando se tomou consciência daquilo a que podiam conduzir. Apareceram assim, envolvidas nestes cerimoniais escolares, aquilo a que se chamou "les tournantes", isto é, rituais de violação colectiva que se começaram a generalizar em escolas e liceus. O que não espanta - a lógica do que está em jogo é a isto que conduz.
Não será altura de estarmos atentos e denunciarmos todas as eventuais derrapagens?
Não será altura de combatermos sem complacências o próprio espírito destas iniciativas?
Eduardo Prado Coelho (Público, 25 de Setembro de 2002)
outubro 04, 2007
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2 comentários:
Mas de onde vieram estas aventesmas? - Dei por mim a perguntar-me, ao entrar numa estação de metro cheia de universitários trajados. E não me conseguia recordar onde tinha ido buscar essa palavra...
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