por Alexandra Lucas Coelho, jornalista que viveu durante anos em Israel, num
artigo do Público:
"Pensei escrever este texto várias vezes nos últimos, digamos, anos. Acabei por ir deixando passar, e neste segundo dia de 2009 haveria certamente razões, digamos, domésticas, para deixar passar, sobretudo quando a chuva subitamente pára e Lisboa é a mais bela cidade suspensa vista do meu sótão.
Mas talvez tenha sido da enésima vez que li ou ouvi perguntar nos últimos dias - e se caíssem rockets em Lisboa?
Ou talvez seja de andar a ler um escritor - Le Clézio - que se dedicou a aprender com grandes perdedores da História escrita pelo Ocidente, dos aztecas às tribos do deserto.
Não posso dizer que seja cristã, muçulmana nem judia. Fui educada como católica e julgo ter retido que Cristo foi um homem que deu a vida pelos sem-poder.
Aprendi nos livros, e depois em África, no Médio Oriente e na Índia, que o lugar onde nasci - Lisboa - é particularmente mestiço, e isso faz-me sentir menos confinada. Por um triz não nasci em Cabo Verde, e aparentemente não tenho sangue negro, mas gosto de acreditar que algum gene meu possa ser sefardita, berbere, árabe ou indiano.
Aprendi com os jornalistas que me fazem acreditar no jornalismo que ser repórter é ir ver e ouvir sobretudo o que ninguém está a ver e ouvir.
Aprendi vividamente em Israel - com amigos, na imprensa, nos livros de escritores como David Grossman ou Amos Oz - que a lucidez é uma obrigação dos fortes, particularmente daqueles que já foram fracos. Quando um judeu se decide a ser exigente, não há ninguém que o consiga ultrapassar em autocrítica, o que é um orgulho nacional em Israel, embora politicamente inócuo, na maior parte das vezes.
E é por tudo isto que fazer da defesa de Israel a origem e a moral de uma semana de bombardeamentos da Faixa de Gaza me parece do domínio da obscenidade. E uma obscenidade que fazemos nossa - nós, os cristãos, os compassivos, que bebemos o sangue de Cristo e tanta culpa carregamos, da Inquisição, do Holocausto, de sermos cúmplices por pensamentos, palavras, actos e omissões.
Eu carrego as minhas culpas individuais, que são muitas, entre as quais haverá muitos cristãos e agnósticos, alguns judeus, muçulmanos, hindus, ateus e até algum budista, mas não quero ser encurralada pela culpa alheia.
Chegou-se a um ponto - totalitário, intimidatório - do discurso contemporâneo em que qualquer pessoa pode ser insultada como anti-semita por criticar Israel. O pós-11 de Setembro, no qual foi eleito o actual Presidente iraniano, favoreceu toda uma tolerância para com esses insultos. Pois quem é quer ser confundido com aquele Ahmadinejad que ameaça limpar o Estado de Israel?
Não sou sionista nem anti-sionista. Não sei se um Estado judaico seria o melhor para os judeus, mas hoje Israel existe, pujante, fascinante, e eu aceito-o nas fronteiras internacionalmente reconhecidas. Vivi em Israel, tenho amigos judeus dentro e fora de Israel e não admito que alguém me chame anti-semita.
Outra estratégia de esvaziamento das críticas a Israel é acusar quem as faz de ser pró-palestiniano. É o que O'Neill chamaria o modo funcionário de ser. Só os funcionários acham que quem não concorda com eles é do partido rival.
Eu tenho um problema com partidos, como sempre tive com clubes, grupos e colectividades. É o problema da liberdade individual, ou se quiserem da indisciplina. Não me hão-de ver a marchar pela Palestina nem por Israel, encostada a um dos lados. O que eu queria neste novo ano era combinar com o meu amigo de Gaza que ele vinha cá como combino com a minha amiga de Jerusalém Ocidental que vou lá. Queria, em suma, que ambos dormissem sem pensar que o céu lhes vai cair em cima da cabeça - mas é infinitamente mais provável que isso aconteça ao meu amigo de Gaza.
Tal como os líderes israelitas, os líderes palestinianos estão fartos de cometer erros, para já não falar dos árabes desde 1948. Eu também lamento que a escalada da segunda Intifada - de pedras para bombistas suicidas - tenha destruído o chamado "campo da paz" em Israel. Lamento a corrupção da Fatah, que se autodestruiu. Lamento os rockets do Hamas, que se voltam contra os palestinianos. Lamento tudo isto, como lamenta quem está de fora, mas eu vi lá dentro como o Hamas se tornou forte. Vi o Hamas ganhar as eleições em 2006, vi o Hamas tomar Gaza em 2007, e vi ontem o meu amigo de Gaza, que nunca foi do Hamas, escrever no chat que finalmente percebeu como é que uma pessoa se torna bombista suicida.
O problema não é só não haver um futuro, é não haver um presente. A cada dia que passa, o meu amigo de Gaza continua sem trabalho e sem poder levar a família para outro país. As filhas crescem todos os dias e esta vai ser a infância delas. Têm 40 quilómetros de comprimento por seis de largura para se mexerem, com más casas, más escolas, maus hospitais, má comida, má água. E vem a depressão, a doença, a violência.
Toda a gente sabe que a violência gera violência. Toda a gente sabe que não há solução militar. Toda a gente sabe - está em todos os documentos internacionais assinados por Portugal - que Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental são territórios nas mãos de Israel. Toda a gente sabe que há milhões de refugiados palestinianos há mais tempo do que eu estou viva e ninguém os quer. E é por isso que justificar o bombardeamento de Gaza com a defesa de Israel é tão obsceno - simplesmente porque toda a gente sabe que os palestinianos são os perdedores desta História.
Sim, Israel tem o direito de se defender como qualquer país do mundo - quando for como qualquer país do mundo. Não, não imagino rockets em Lisboa - mas se fosse no tempo da guerra colonial talvez imaginasse.
Quem lá vive sabe. Se isto não muda é porque quem pode não quer, e quem pode são os fortes.